MÚSICAS COMENTADAS

Espaço de músicas comentadas



 Rosa de Hiroshima


Vinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada


Tematicas associadas:imperialismo norte americano,ação Guerra de hiroshima e nagasaki 


Rosa de Hiroshima tornou-se um grande protesto, em forma de música, e aborda as consequências, o desastre que as bombas atômicas fizeram em Hiroshima e Nagasaki, onde em diversas passagens da música fala sobre os sentimentos em relação à guerra. A bomba é comparada com uma rosa, porque quando ela explode, parece com uma rosa depois de desabrochar. Uma rosa normalmente está relacionada com a beleza, no entanto, a rosa de Hiroshima remete para as horríveis consequências deixadas pela bomba atômica.
Rosa de Hiroshima acabou sendo uma das canções mais escutadas nas rádios brasileiras em 1973, e a revista Rolling Stone brasileira a classificou em 69º lugar entre as 100 Maiores Músicas Brasileiras.






 Segundo Foster (2006) Borón (2006)  O uso do termo “imperialismo” foi, por um longo tempo, restrito ao campo marxista. Mesmo as diversas intervenções militares estadunidenses durante a guerra fria não suscitaram o uso do termo pelas principais correntes de pensamento nas RI, uma vez que a situação da guerra fria justificava as estratégias geopolíticas. Segundo Borón (2006) e Foster (2006), o conceito de imperialismo reaparece de maneira inesperada a partir de seu “centro”, os EUA, com a “guerra ao terrorismo”. Os termos “império” e “imperialismo” econômico, militar ou cultural são retomados na mídia e na academia norte-americana e mundial, mas vistos como separados, dissociados do capitalismo, podendo ter inclusive uma conotação benévola Durante os anos 70, um dos poucos autores não-marxistas a trabalhar o tema do imperialismo foi Cohen (1976). O autor aponta que o termo ficou relegado a “panfletos políticos”, sendo necessário um método apropriado para redefini-lo, dando-lhe um significado “bem definido, eticamente neutro e objetivo”, para que seja útil à análise da Economia Política Internacional (Cohen 1976: 15). Desde este ponto de partida, o autor define imperialismo como “tipo de relações internacionais caracterizadas por uma assimetria particular — a assimetria dedominação e dependência. [...] O imperialismo refere-se àquelas relações particulares entre nações inerentemente desiguais que envolvem subjugação efetiva, o exercício real da influência sobre o comportamento” (Ib.: 20, grifos no original). O conceito seria operacional. A forma do imperialismo pode ser o controle direto, através da extensão da soberania política, ou indireto, com penetração econômica e pressões diplomáticas ou militares.Nesse contexto,pode-se detacar o Imperialismo conforme Cohen (1976)  reflete o paradigma realista do sistema internacional. A expansão de poder (territorial, econômico, político e militar) dos Estados é justificada para manutenção de seu status quo, o que apresenta uma ambiguidade, uma vez que é necessário expandir e crescer para manter a situação original de poder. A política de expansão do Estado imperial se torna uma “escolha racional”, perdendo elementos morais e éticos. O poder adquire conotação neutra, e a política de poder e expansão se torna um movimento quase mecânico. As consequências da guerra — racismo, exploração e subalternização de outras nações, povos e classes — acabam sendo silenciadas. Observamos aqui a dissociação entre capitalismo e imperialismo. Outros autores também buscaram o uso historicamente específico do conceito de imperialismo e a separação de seus aspectos econômicos e políticos (ver, p. ex., Smith (1981). 

 Fontes : http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1211

Letra de música: Rei do Gado
Autores: Tião Carreiro e Pardinho
Álbum: Rei do Gado
Ano: 1961

Num bar de Ribeirão Preto
Eu vi com meus olhos esta passagem
Quando champanha corria a rodo,
No alto meio da grã-finage

Nisto chegou um peão
Trazendo na testa o pó da viagem
Pro garçom ele pediu uma pinga,
Que era pra rebater a friage

Levantou um almofadinha e falou pro dono
"Eu tenho má fé
Quando um caboclo que não se enxerga,
Num lugar deste vem pôr os pés.

Senhor que é o proprietário
Deve barrar a entrada de qualquer.
Principalmente, nesta ocasião,
Que está presente o rei do café"

Foi uma sarva de parmas
Gritaram viva pro fazendeiro
"Quem tem milhões de pés de cafés
Por este rico chão brasileiro?

Sua safra é uma potência
Em nosso mercado e no estrangeiro
Portanto vejam que este ambiente
Não é pra qualquer tipo rampeiro"

Com um modo bem cortês
Responde o peão pra rapaziada
"Essa riqueza não me assusta,
Topo em aposta qualquer parada

Cada pé desse café
Eu amarro um boi da minha invernada
E pra encerrar o assunto eu garanto
Que ainda me sobra uma boiada"

Foi um silêncio profundo,
O peão deixou o povo mais pasmado
Pagando a pinga com mil cruzeiro,
Disse ao garçom pra guardar o trocado

"Quem quiser meu endereço
Que não se faça de arrogado
É só chegar lá em Andradina,
E perguntar pelo rei do gado".



Temáticas associadas: Circuito produtivo da agricultura; Meio e paisagem rural; Meio natural e meio técnico-científico-informacional; Segregação socioespacial.

Leitura geográfica da música: A música, interpretada por Tião Carreiro e Pardinho, retrata os conflitos de poder que se travavam no meio rural entre produtores de café paulistas (granfinagem em Ribeirão Preto) e os emergentes criadores de gado de Andradina/SP, na divisa com o Mato Grosso do Sul. Mostra também as desigualdades sociais alimentadas pela sociedade de classes e reproduzida nas relações de trabalho agrícolas (rampeiro X riqueza), segmentando socioespacialmente o caboclo em relação ao fazendeiro agroexportador. Da classe emergente, se mostra ao final a capacidade de consumo que ainda não estava acompanhada do respeito e status social.

Nesse contexto, Santos; Silveira (2001) colocam que o meio técnico e científico brasileiro se desenvolve no período de mecanização da atividade agrícola e crescente divisão técnica e social do trabalho, surgindo a figura do assalariado rural e da expansão dos tratores na lavoura. Em termo de estrutura sociopolítica, Martins (1979) coloca a tese do “cativeiro da terra”, explicando que a exploração do trabalho no campo, como a música expõe com o binômio riqueza e pobreza, é fruto da concentração fundiária que remete ao passado, com a primeira Lei de Terras e o insucesso da reforma agrária no país.

Poderíamos nessa análise considerar também as variáveis tempo, espaço, processo e ator social. O tempo histórico é o do ciclo econômico cafeeiro, politicamente marcado pelo revezamento político da doutrina do “café com leite”. A letra da música cita o 'rei do café' e o 'rei do gado' e a riqueza gerada pela venda dos seus produtos. Trata-se do valor de troca criando renda, além da mais-valia pela exploração do trabalho. Segundo Santos (2009), o tempo é elemento essencial do estudo do espaço geográfico pelas heranças deixadas na paisagem e pela dinamicidade, entendida pela velocidade dos fluxos de capital, mercadorias e informação.

espaço da letra é o Estado de São Paulo, mais particularmente as regiões Norte-Nordeste e Noroeste do Estado, colocadas assim em contraponto. O ciclo cafeeiro já em estagnação diante da acumulação de capital que havia gerado, cede espaço à expansão da fronteira agrícola e o estímulo à pecuária para ocupação de novas terras, mais baratas, e geralmente, menos férteis. Cidades modernas, atualmente consideradas cidades médias, como Rib. Preto, lado a lado às cidades pequenas em modernização, que não apresentavam os fixos e fluxos das primeiras, mas que recebiam objetos modernos a atrair fluxos de investimentos em maior intensidade. Trata-se do espaço como aceleração desigual de tempo (SANTOS, 2002), expressa nas rugosidades dos casarões históricos e estações-ferroviárias das cidades do interior paulista.

Os processos descritos são típicos do início da industrialização brasileira e a modernização do espaço, com a expansão da atividade agrícola e migrações populacionais. Tavares (1986) fala da “modernização conservadora” ou “dolorosa”, resultante da tecnificação do meio e intensificação dos fluxos, desacompanhada das mudanças nas relações sociais de produção e da característica fundiário-elitista da agricultura nacional. A agricultura científica e globalizada pode também ser inferida da análise da música.

Os atores sociais descritos são: o fazendeiro e produtor de café, proprietário de terras e que acumula capital na exportação cafeeira, reinvestindo no consumo (champanha), na modernização urbana, e pari passu, na incipiente industrialização. O peão da bovinocultura, expressando o trabalhador do campo e o próprio dinamismo dessa outra atividade agropecuária, com implicações na própria segmentação social (toma pinga), emergência econômica e redirecionamento do comércio internacional.


Essa letra de música lida com espaços-tempos presentes e passada, com processos e atores sociais que possuem particularidades e que marcam ainda a formação territorial paulista e brasileira.

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Letra da música: Saudosa Maloca
 Compositor: Adoniran Barbosa
Interprete: Adorinan Barbosa/ Demônios da garoa 
Ano: 1951

Si o senhor não está lembrado
Dá licença de contá
Que aqui onde agora está
Esse edifício alto

Era uma casa velha
Um palacete abandonado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca

Construímos nossa maloca
Mais, um dia
Nem quero me lembrar
Veio os homens cas ferramentas

O dono mandô derrubá
Peguemo tudo a nossas coisas
E fumos pro meio da rua
  
Apreciar a demolição

Que tristeza que eu sentia
Cada táuba que caía
Duia no coração
Mato Grosso quis gritá

Mas em cima eu falei:
Os homis tá cá razão
Nós arranja outro lugar

Só se conformemos quando o Joca falou:
"Deus dá o frio conforme o cobertor"
E hoje nóis pega a páia nas grama do jardim

E prá esquecê nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida,
Que dim donde nóis passemos dias feliz de nossa vida
  


Temáticas associadas: Segregação sócio-espacial, cidade/ urbanização.

   Leitura geográfica da música: “Aquela maloca, que na verdade era um palacete, hoje encontra-se demolida..Eu, Mato Grosso e o Joca nem podemos acreditar, que o lugar que construímos com nosso trabalho e suor, onde passamos momentos felizes com os nossos,  hoje esta ao chão junto com nossos sentimentos. E o que nós fazemos? Mato grosso quis gritar, mas antes que eu pudesse falar veio “os homis” com as armas na mão. O Joca falou “eles irão nos ajudar, vi na televisão que alugueis pra gente eles vão dar”. Mas hoje a gente cuida das feridas, físicas e mentais.” (OLIVEIRA, P. 2012). Observando o texto a cima, vemos claramente a relação entre os acontecimentos do massacre de Pinheirinhos com a música Saudosa Maloca de Adorinan e em ambos podemos trabalhar alguns conceitos como, por exemplo: cidade, urbanização e segregação sócio-espacial. 
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Letra da música: Envelhecer
Compositor: Arnaldo Antunes

A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer
A barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer
Os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer
Os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecer


Como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é
E dizer venha pra o que vai acontecer
Eu quero que o tapete voe

No meio da sala de estar
Eu quero que a panela de pressão pressione
E que a pia comece a pingar
Eu quero que a sirene soe
E me faça levantar do sofá
Eu quero pôr Rita Pavone
No ringtone do meu celular
Eu quero estar no meio do ciclone
Pra poder aproveitar
E quando eu esquecer meu próprio nome
Que me chamem de velho gagá
Pois ser eternamente adolescente nada é mais demodé

Com uns ralos fios de cabelo sobre a testa que não para de crescer
Não sei por que essa gente vira a cara pro presente e esquece de aprender
Que felizmente ou infelizmente sempre o tempo vai correr
Não quero morrer pois quero ver

Como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é
E dizer venha pra o que vai acontecer
Eu quero que o tapete voe

No meio da sala de estar
Eu quero que a panela de pressão pressione
E que a pia comece a pingar
Eu quero que a sirene soe
E me faça levantar do sofá
Eu quero pôr Rita Pavone
No ringtone do meu celular
Eu quero estar no meio do ciclone
Pra poder aproveitar
E quando eu esquecer meu próprio nome
Que me chamem de velho gagá.
  




Temáticas associadas: Geografia da população.
Leitura geográfica da música: Nas últimas décadas, ocorreu um aumento da terceira idade e dos adultos e uma diminuição na porcentagem de jovens, pois em 1950 a distribuição era a seguinte: 4,6% de idosos, 43,1% de adultos e 52,3% de jovens (IBGE). Isso aconteceu, em decorrência da diminuição das taxas de mortalidade e natalidade e do aumento da expectativa de vida. Apesar dessa ligeira alteração nas porcentagens, o Brasil ainda pode ser considerado como um país jovem, no sentido de que as pessoas com até 19 anos de idade ainda constituem a faixa mais numerosa da população. Além disso, a proporção dos idosos no total da população é ainda pequena em comparação a países como a Suécia ou os Estados Unidos, sendo mais semelhante aos países do terceiro mundo, mas conforme as pesquisas mostram, o Brasil está caminhando para deixar de ser um país com um percentual baixo de idosos. 
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Letra da música: Disneylândia
 Compositores: Arnaldo Antunes, Sérgio Britto, Paulo Miklos.
Interprete: Titãs
Ano: 1993 Álbum: Titanomaquia

Filho de imigrantes russos casado na Argentina
Com uma pintora judia,
Casou-se pela segunda vez
Com uma princesa africana no México

Música hindu contrabandeada por ciganos poloneses faz sucesso
No interior da Bolívia
Zebras africanas e cangurus australianos
No zoológico de Londres
Múmias egípcias e artefatos incas no museu de Nova York

Lanternas japonesas e chicletes americanos
Nos bazares coreanos de São Paulo
Imagens de um vulcão nas Filipinas
Passam na rede de televisão em Moçambique

Armênios naturalizados no Chile
Procuram familiares na Etiópia,
Casas pré-fabricadas canadenses
Feitas com madeira colombiana

Multinacionais japonesas
Instalam empresas em Hong-Kong
E produzem com matéria prima brasileira
Para competir no mercado americano

Literatura grega adaptada
Para crianças chinesas da comunidade europeia
Relógios suíços falsificados no Paraguai
Vendidos por camelôs no bairro mexicano de Los Angeles
Turista francesa fotografada seminua com o namorado árabe
Na Baixada Fluminense

Filmes italianos dublados em inglês
Com legendas em espanhol nos cinemas da Turquia
Pilhas americanas alimentam eletrodomésticos ingleses na Nova Guiné
Gasolina árabe alimenta automóveis americanos na África do Sul
Pizza italiana alimenta italianos na Itália

Crianças iraquianas fugidas da guerra
Não obtém visto no consulado americano do Egito
Para entrarem na Disneylândia.

http://letras.mus.br/titas/86548/


Temáticas associadas: Territorialização, territorialidade, globalização.

 Leitura geográfica da música: A escolha dessa letra se deve à sua riqueza de detalhes de processos territoriais vigentes, representativos de uma economia e sociedade-mundo em transformação e, devido, aos elementos discursivos críticos comumente presentes nesta letra em específico e nas letras, em geral, da banda paulistana Titãs. Esse grupo foi formado nos anos 1980, por jovens colegas de escola moradores de São Paulo, capital, pertencentes à classe média e que dispunham de condições para estudar em colégios privados. Sua formação mais conhecida incluiu oito integrantes e, de meados dos anos 1980 até os dias atuais, os Titãs conseguiram ganhar popularidade e acesso crescente no mercado da música, não perdendo, entretanto, o aspecto poético de suas canções e os elementos crítico-sociais no conteúdo das mesmas. O grupo fez parte daquilo que se denominou nos veículos de mídia de “rock nacional”, período de proliferação de grupos e bandas que difundiam a musicalidade estética do rock internacional, com canções cujas letras expunham elementos da realidade socioterritorial brasileira, tratando de questões e problemáticas urbanas, sobretudo a violência, corrupção política, pobreza, favelização, mídia etc..


            Ideologicamente os Titãs poderiam ser associados àquela classe burguesa intelectual com elementos de liderança e inspiração social, ao contrário dos integrantes do movimento do Punk, Rap e Hip-hop, mais identificados com classes proletárias e marginalizados. Entretanto,  não temos a intenção de analisar a música dos Titãs sob esse prima, mas sim utilizar uma de suas letras como elemento de relato e discurso para pensar o conceito de (micro)territorialidade, auxiliando no movimento de se identificar na letra musical elementos geográficos com uma forma de linguagem para estudos e entendimentos de processos de representação, uso e organização territorial.

            A letra musical em tela aparece como relato, discurso e expressão de eventos e fatos sociais e espaciais típicos dos anos 1990, daquilo que se convencionou chamar de “processo de Globalização”. Sendo um dos temas mais discutidos na atualidade e que grandes impactos representaram e representam no pensamento social e nas diversas formas de leitura da realidade, a globalização se difunde como um movimento de crescente integração econômica, viabilizada pela abertura comercial, pela ação de grandes corporações transnacionais, pelo mercado financeiro transfronteiriço e pelas redes integradas pelas tecnologias de informações e comunicação. Aparece como um processo tipicamente capitalista, em seu período monopolista e financeiro e que produz impactos diferenciados conforme os países e seus quadros regulatórios e normativos, incitando o desmantelamento do Estado-Nação para acelerar investimentos desejosos da mais-valia global. 

Portanto, a globalização promove a fragmentação à medida que integra determinados lugares às redes e cadeias de acumulação do grande capital da indústria e dos serviços, afastando temporariamente outros lugares que se tornam apenas reserva de mão-de-obra, terra e outros recursos naturais, desprovidos de densidades técnicas e institucionais.

            O impacto espacial da integração econômica globalizadora gera, em movimento desordenado, uma ordem tecnificada e uma desordem social e cultural, buscando construir uma nova ordem cultural e social por meio do imperativo do mercado, do produto e da tecnologia via consumo ou trabalho controlado pela velocidade, o just-in-time. E, ao desconstruir antigos laços identitários e tentar construir novos, ou conviver com eles, estamos lidando com processos e movimentos territoriais de controles e poderes que existiam e se desfizeram; ou que são reconstruídos por uma lógica externa extrovertida, por uma mescla de lógicas externas e internas incorporadas; ou pela lógica interna como resistência cultural.

Assim, podemos explicar essas dicotomias dialéticas de ordem X desordem, construção X desconstrução, identificação X desindentificação, pelo prisma da desterritorialização. Haesbaert (2006) trata o conceito de desterritorialização como um mito da globalização, pois a sociedade busca incessantemente reconstruir vínculos e laços de identidade e de representação e apropriação de territórios em outros lugares diferentes dos seus originários. A realidade socioterritorial contempla, como pares de um mesmo processo político e econômico, a desterritorialização e a reterritorialização. Se em um primeiro momento se desfazem referenciais culturais, econômicos, políticos e sociais, em um segundo momento, ou simultaneamente, são reconstruídos no mesmo lugar ou em outros lugares novos referências ou referências de outros tempos e espaços.

A territorialidade, como ato e movimento individual e coletivo, passa pela ação disruptiva de desterritorialização (DT) e reterritorialização (RT), pois as representações, sensações e mecanismos de controle e apropriação espaciais, são desfeitos e refeitos em seus conteúdos econômicos, culturais, políticos e sociais. Símbolos, marcos e mecanismos de agregação e referenciação desaparecem, como forma, mudam de função e de valor e dão espaço a novas formas e funções que repactuam laços e referenciais identitários. Portanto, o campo da territorialidade, em sua bifurcação material e imaterial, pode ser interpretado em fatos e processos pela dinâmica desterritorializadora e reterritorializadora, pois não estamos falando apenas de ações articuladas por grandes empresas e Estados em âmbitos maiores (nacional e global), mas também de ações correntes em cidades e bairros, no local, que sofrem influências de outras escalas de fenômenos e que chegam ao local de vida e ao cotidiano das pessoas.

Quanto ao conteúdo da letra, estabeleceremos as nuances principais vinculadoras dos elementos representativos de eventos e movimentos sociais, econômicos, políticos e culturais com a compreensão sobre a construção de territorialidades pelo movimento contínuo de desterritorialização e de reterritorialização.

Um elemento fundamental desse “poema musical” é o fato de que existe um movimento populacional que ocorre entre as fronteiras políticas nacionais, envolvendo cruzamentos e choques culturais. Trata-se dos movimentos de emigração-imigração, como elementos componentes das migrações internacionais. Os fluxos populacionais também são elementos componentes da globalização, facilitados pela modernização nos meios de transportes e de comunicações.

No entanto, os fluxos populacionais ainda encontram barreiras, por vezes aparecem como “muros”, sociais, econômicos e culturais, que dificultam a fluidez de pessoas, em contraponto à fluidez de mercadorias, informações e de finanças. Essas dificuldades comumente obrigam levas de pessoas em condições sociais e econômicas desfavoráveis a realizarem imigrações ilegais, clandestinas, apesar de todos os riscos envolvidos em um verdadeiro “escambo” de seres humanos. Somente por esse processo, um filho de imigrantes russos poderia ter casado com uma pintora judia e, casado posteriormente com uma princesa africana no México. Primeiramente, considera-se que seus pais se desterritorializaram inicialmente ao emigrarem da Rússia, dando ao seu filho a condição de se reterritorializar em outra nação, espontaneamente ou obrigatoriamente e, buscado construir vínculos identitários via casamento com pessoas de outras nacionalidades e culturas (judias, africanas).

Mas outro aspecto que sobressai na letra é o referencial econômico e comercial dos fluxos globalizados. Ele aparece através da abertura ao comércio internacional via acordos bilaterais e multilaterais, bem como pela integração comercial controlada pelas relações entre corporações multinacionais e suas filiais, vistas como bases territoriais avançadas para o controle de fontes de matérias-primas, mão de obra, mercados consumidores e recursos logísticos. Nota-se também, nas entrelinhas, a referência ao intercâmbio comercial ilegal. Além disso, outros contributos à intensificação de fluxos de investimentos e de intercâmbios comerciais são os arcabouços normativos e institucionais mais ou menos atrativos aos investimentos globais em busca de lucratividade inter-territorial. A letra exibe tais conteúdos ao tratar da venda de “lanternas japonesas e chicletes americanos (estadunidenses) nos bazares coreanos de São Paulo”. Bens de consumo duráveis (eletrônicos) e não duráveis (alimentício) oriundos de dois países desenvolvidos e industrializados aparecem no mercado interno brasileiro através de um estabelecimento de comércio varejista situado na capital paulista, de proprietários estrangeiros. Tal estabelecimento é o final de um sistema produtivo que envolve a produção, circulação, distribuição e consumo.

A desterritorialização e reterritorialização são evidenciadas na presença de produtos estrangeiros em prateleiras brasileiras, ocupando o espaço de mercado da indústria nacional e, também, pela presença de asiáticos controlando a propriedade imobiliária e de capital mercantil em determinados bairros paulistanos. A reterritorialização advém também da assimilação dos produtos estrangeiros pela população consumidora nacional, por meio da homogeneização cultural, tornando tais elementos um tipo de padrão de sociabilidade exterior pelo primado da técnica atrelada à maneira própria de reprodução de um modo de vida de grupos sociais brasileiros. Por vezes, a rejeição a tais produtos reflete a resistência à uniformização cultural, mantendo um distanciamento estratégico para manutenção dos símbolos identitários próprios da forma de se alimentar e viver de um povo.

O trecho sobre “multinacionais japonesas instaladas em Hong-Kong, produzindo com matérias-primas brasileiras para competir no mercado americano” demonstra a desterritorialização da produção do Japão para a reterritorialização da mesma em uma cidade-estado encravada na China, ocorrendo simultaneamente a desterritorialização de possíveis empresas do próprio lugar, afastadas pela competição desigual com grandes grupos multinacionais japoneses. Conquanto, a competição pelo mercado estadunidense é uma forma da empresa japonesa de se reterritorializar neste país a fim de explorar as economias de escala e de custos decrescentes possíveis de se obter por lá e que não pode mais obter em seu país de origem, usando matéria-prima brasileira via reterritorialização de parte de sua produção para subcontratados brasileiros e desterritorialização dos brasileiros que passam a produzir para o capital estrangeiro.

Os choques culturais também são evidentes, culminando em assimilação ou conflito. O trecho que trata da “literatura grega adaptada para crianças chinesas da comunidade europeia” apresenta um quadro de desterritorialização da literatura grega, símbolo identitário da Grécia e, sua reterritorialização em outros países europeus, por uma comunidade oriunda da China, desterritorializada de seu país e reterritorializada em território europeu. O mesmo movimento ocorre com os “filmes italianos dublados em inglês com legendas em espanhol”, desterritorializando a cultura como mercadoria da Itália, reterritorializando-a em países anglófonos e hispânicos, consumidores e admiradores desse elemento culturo-simbólico italiano.


O elemento político aparece com força quando do impedimento de um grupo populacional oriundo do Oriente Médio, mais precisamente do Iraque, proibido de adentrar nos Estados Unidos por barreiras político-diplomáticas transmitidos às suas embaixadas e consulados pelo mundo. O impedimento remete a uma norma imposta pelo Estado nacional estadunidense face aos conflitos nos quais se envolve e, recentemente, tendo o Iraque como adversário estratégico dentro do cenário de controle de recursos energéticos fundamentais ao funcionamento da economia moderna e abundantemente concentrados em terras iraquianas. Crianças tentam se desterritorializar, face às condições conflituosas que as condenariam à morte ou pobreza, e buscam penetrar nos Estados Unidos, horizonte de reterritorialização desejável econômico e socialmente, através do complexo turístico da “Disneylândia”, ponto de recepção e passagem tratado como “não-lugar”, pois recria uma realidade inexistente e que não é um recorte territorial que permitiria a fixação, o enraizamento e a reterritorialização do povo iraquiano.


QUADRO 1 – TERRITORIALIDADES DA MÚSICA DISNEYLÂNDIA ENTENDIDAS PELA DIALÉTICA DTxRT

Territorialidades
Desterritorialização
(Re)territorialização
Econômicas
Multinacionais japonesas...
Produzem com matéria-prima brasileira...
Feitas com madeira colombiana...
Falsificados no Paraguai...
Pilhas americanas alimentam eletrodomésticos ingleses...
Gasolina árabe alimenta automóveis americanos...
Instalam empresas em Hong Kong...
Para competir no mercado americano...
Casas pré-fabricadas canadenses...
Relógios suíços...
No interior da Nova Guiné...
Na África do Sul...
Culturais
Música hindu contrabandeada por ciganos poloneses...
Procuram familiares na Etiópia...
Imagens de um vulcão nas Filipinas passam na rede de TV em Moçambique...
Múmias egípcias e artefatos incas no Museu de Nova Iorque...
Literatura grega adaptada para crianças chinesas...
Filmes italianos dublados em inglês com legendas em espanhol...
Casado na Argentina com uma pintura judia...
Faz sucesso no interior da Bolívia...
Da comunidade européia...
Nos cinemas da Turquia...

Políticas
Crianças iraquianas fugidas da Guerra...
Não obtém visto no consulado americano do Egito...
Casou com uma princesa africana...
Armênios naturalizados no Chile...
Sociais
Filho de imigrantes russos...
Turista francesa fotografada seminua com o namorado árabe...
Na Baixada Fluminense...
Pizza italiana alimenta italianos na Itália...
Para entrarem na Disneylândia...
   Organização: Fuini, 2012
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As reflexões até o momento realizadas evidenciam os sentidos que a música pode adquirir como ferramenta pedagógica para o estudo de conceitos e fenômenos geográficos, pois apresenta elementos cotidianos de diversos lugares, destacando determinados eventos, formas-funções espaciais e representações de territorialidade que servem, pela prática do diálogo, como um texto favorável à construção crítica de conhecimentos por meio dos relatos e ideologias que contém identidades, símbolos e utopias de territórios e de lugares.

            Mais especificamente sobre as microterritorialidades urbanas, podemos analisá-las também pelos elementos relatados na música acerca das paisagens urbanas em diferentes partes do mundo. Um dos grupos mencionados e que expressa fortemente no território seus símbolos e identidades são os imigrantes. A música apresenta alguns referenciais específicos de deslocamentos humanos, antigos ou presentes, que trazem reflexos atuais no sentido de contribuírem com a forma societal dos lugares onde se enraízam e demarcar decisivamente a configuração territorial dos mesmos.

Trata inicialmente de “filho de imigrantes russos”. Seria descendente dos primeiros emigrados e que contraiu diversos laços de casamento até, finalmente, se reterritorializar no México, país latino-americano, com outra pessoa emigrante de origem africana. Esse exemplo se concretiza por uma série de relações cotidianas que ocorreram em determinadas cidades, mais especificamente em ruas e bairros de cidades. Outras referências a turistas aparecem na música, como “crianças chinesas na Europa”, os “armênios no Chile”, “crianças iraquianas no Egito em direção aos Estados Unidos”, com fortes apelos à territorialidade como expressão de identidade e representação, entendida através dos termos “comunidade”, “naturalizado”, “adaptado”, “entrada”, “familiares”, que nos trazem a ideia de conversão, assimilação, aceitação, ou seja, de constituição de laços com o novo território e com suas pessoas, objetos e normas. Nota-se também o exemplo dos “ciganos poloneses”, um exemplo de grupo cultural com uma territorialidade específica e esporádica, devido à rapidez com que realizam o movimento de desterritorialização e reterritorialização. No relato da música aparecem associados ao trânsito entre países e prática de atividades ilegais.

            Mais alguns elementos de territorialidade ocorrem na música com a identificação de uma nação e Estado-nação a um determinado produto ou atividade produtiva comum no mercado capitalista de produção, circulação, distribuição e de consumo. Além disso, tais produtos, como elementos de certa identidade territorial nacional, acabam sendo influenciados por itens e insumos de outros países, na denominada “economia em rede e informacional”.

            Aparecem na música a “gasolina árabe”, “pilhas e automóveis americanos”, “matérias-primas brasileiras”, “filmes italianos”, “pizza italiana”, “eletrodomésticos ingleses”, “relógios suíços”, “casas pré-fabricadas canadenses”, “madeira colombiana”, “multinacionais japonesas”, sendo possível também visualizar o funcionamento da divisão internacional e territorial do trabalho na atualidade através do tipo de produto, valor tecnológico adicionado a ele e, das relações de exploração do trabalho barato e de matérias primas que conferem a determinados países posições vantajosas na economia internacional.

            A microterritorialidade aparece nesses casos pelo impacto social, econômico e cultural que cada produto e atividade manifesta na ordem de relações que ocorrem nos microcosmos localizados no tecido urbano, chegando às “famílias”, às “casas”, aos “bazares”, aos “cinemas”, “museus”, sendo fortes estes símbolos como elementos de cotidianidade, representação e identidade.

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